Enfrentar os interesses corporativos para avançar na agenda de SAN

Por João Peres, de O Joio e o Trigo

A sociedade brasileira, mesmo diante de contextos adversos, historicamente tem se articulado em defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável. Espaços como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) são exemplo disso. São arenas de participação social que estrategicamente conseguem ser protegidas da influência corporativa. No entanto, a possibilidade real de incidência da sociedade está fragilizada quando se trata de instâncias mais altas, como o Congresso Nacional e o nível ministerial do Poder Executivo. Isso não decorre de falta de mobilização popular, mas sim de uma menor sensibilização institucional em relação à participação social e, ao mesmo tempo, de uma abertura cada vez maior à influência e às estratégias das corporações, que acabam desviando a agenda de segurança alimentar nutricional e diminuindo sua efetividade.

É ilustrativo e preocupante observar figuras centrais da política nacional, como o Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil (MDS), Wellington Dias, sendo homenageadas por gigantes do setor de bebidas. O troféu “Unidos pelo Brasil”, entregue pela Coca-Cola ao ministro, em maio deste ano, parece ilustrar um falso compromisso com o interesse público. A homenagem se deu pelo “trabalho à frente do ministério, que resultou na saída de 24,4 milhões de pessoas da situação de fome em 2023”(BRASIL, 2024). Mas se a Coca-Cola realmente quer ajudar o Brasil, ela deveria começar a pagar os impostos, pois não há nada mais efetivo para o combate à fome do que o recolhimento de impostos (entre 2015 e junho de 2024, a empresa deixou de pagar R$4,55 bilhões em tributos federais –  O Joio e O Trigo, 2025).

Porém, o verdadeiro interesse dessas corporações é maximizar seus lucros, não combater a fome. Isso foi  evidenciado por seus posicionamentos em momentos políticos decisivos, como na Reforma Tributária. Gigantes como Coca-cola e Ambev estiveram entre as que mais atuaram para influenciar a reforma, buscando preservar privilégios e isenções fiscais. Um outro episódio emblemático foi a visita pública à fábrica da Coca-Cola na Zona Franca de Manaus, logo após a aprovação da Reforma Tributária no Senado, do vice-presidente Geraldo Alckmin. Isso reforça a simbologia de um Estado capturado por interesses privados (O Joio e O Trigo, 2024). O vice-presidente estava acompanhado do senador Eduardo Braga (MDB-AM), relator da Reforma, que, no final de maio de 2025, foi homenageado pela Ambev por seu trabalho como relator e por proteger o setor e os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus (Portal Marcos Santos, 2025, e Post no Instagram de Eduardo Braga, em 30/05/2025).

No século XX talvez fosse possível encontrar pontos de complementaridade entre empresas e sociedade civil quando se discutia a promoção da alimentação adequada e saudável, mas no século XXI essa estrutura mudou. Os interesses são crescentemente antagônicos à medida que se aprofunda a desigualdade entre corporações e organizações da sociedade em geral. Hoje o mundo está absolutamente e crescentemente desigual, com emergências globais, como a crise climática que se agrava. Empresas como Coca-Cola, a maior poluidora plástica do mundo, e a JBS, envolvida em escândalos de desmatamento, não podem ser vistas como aliadas dos interesses sociais.

A lógica do lucro acima de tudo é inerente ao modelo corporativo atual, mesmo que isso signifique precarizar seus trabalhadores e comprometer o futuro do planeta. Um exemplo recente dessa contradição veio à tona com a ruptura da parceria entre a ONG Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida e o iFood, em maio deste ano (BRASIL DE FATO, 2025). A organização alegou que, após oito anos de colaboração, não conseguiu avançar com a empresa em um programa de promoção da segurança alimentar para os entregadores, dos quais cerca de um terço vive em situação de insegurança alimentar grave, de acordo com pesquisa realizada pela ONG. A Ação da Cidadania se queixa de que o iFood coloca o lucro “acima das condições básicas de quem sustenta a operação da plataforma”  (BRASIL DE FATO, 2025). Mas qual é a corporação que não faz isso? Onde a gente fixa uma linha de raciocínio, um critério para dizer que parceria com o iFood não é viável, mas com a Coca-Cola, sim? É por isso que a discussão sobre conflitos de interesse é muito necessária dentro do nosso contexto histórico.

A precarização dos modelos de trabalho não é um problema exclusivo do iFood. O que a empresa faz é reproduzir um sistema que gera fome e exclusão, portanto é preciso questionar toda a estrutura, e isso aponta para um dos principais desafios, que é desnaturalizar os conflitos de interesse. Casos como o do ministro Wellington Dias, que aparece reiteradamente em eventos promovidos por corporações que contribuem pouco com o país, não devem ser vistos como aceitáveis. É necessário recuperar a capacidade de estranhar o que hoje parece corriqueiro, como as alianças e a proximidade de corporações com o poder público. E, do ponto de vista da promoção da segurança alimentar e nutricional, isso é uma questão central. É esse tipo de relação que permite uma incidência direta em diversas políticas públicas, como acontece com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é frequentemente alvo de pressões para abrir espaço a produtos alimentícios ultraprocessados em detrimento da sociobiodiversidade brasileira, mesmo que isso comprometa o direito à alimentação adequada e saudável e à soberania alimentar.

Avançar na prevenção de conflitos de interesse é enfrentar as raízes da fome. Isso implica, antes de tudo, questionar os modelos corporativos que produzem a fome, não apenas tentar mitigá-la. Não se trata de negociar condições mínimas para entregadores, por exemplo, mas de reconhecer que o modelo de trabalho por aplicativos precariza vidas e transfere à sociedade responsabilidades que caberiam às empresas. O mesmo vale para outras áreas, pois não basta implementar políticas emergenciais, é preciso realizar mudanças estruturais, entender o momento histórico atual e refletir criticamente sobre as parcerias corporativas, os modelos que são perpetuados e os conflitos que são ignorados.

Esse texto é fruto do webinário “A interferência do setor privado na agenda da Segurança Alimentar e Nutricional”, realizado pelo ObservaCoI no dia 5 de junho. Leia também o texto da Mariana Santarelli, do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). 

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