Por Mariana Santarelli, do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Faz-se cada vez mais necessário discutir conflitos de interesseConflitos de interesse (CoI) surge quando existe a possibilidade de um interesse secundário influen... (CoI) no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), especialmente em relação às fronteiras, limites e possibilidades da participação das entidades privadas com ou sem fins lucrativos. Entre os desafios existentes para fazer avançar essa pauta, o primeiro é a ausência de compreensão ampla, tanto da sociedade quanto de atores do próprio campo da segurança alimentar e nutricional, sobre os riscos associados ao consumo de produtos alimentícios ultraprocessados e sobre as formas como a indústria manipula informações, estudos e políticas públicas.
Por isso, estudos como o Dossiê Big FoodRefere-se às empresas multinacionais de alimentos e bebidas com enorme e concentrado poder de merca... (do Idec e da ACT Promoção da Saúde – primeira edição e versão 2.0), esforços de divulgação do Guia Alimentar para a População Brasileira e da classificação Nova, e obras como a de Marion Nestlé, “Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos” (São Paulo, 2020), são fundamentais. São trabalhos que ajudam a mostrar como interesses privados voltados ao lucro se contrapõem aos princípios das políticas alimentares, e em especial da nossa Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN).
Sem esse entendimento, naturalizamos absurdos, como o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS) firmando acordo com a Coca-Cola para implementar cozinhas solidárias; grandes redes de supermercado com voz ativa nas negociações da reforma tributária e no debate sobre desperdício de alimentos; o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (ABIA) presidindo o CONSEA-SP1; e até o risco real de organizações de sociedade civil financiadas por grandes corporações presidirem o CONSEA Nacional.
Como segundo grande desafio está a ausência de normas claras para identificar, prevenir, mitigar e gerenciar situações de conflitos de interesse no âmbito do SISAN. Ainda não existe, por exemplo, uma resolução do CONSEA que trate especificamente disso. Mas há acúmulos importantes como propostas que saíram da conferência nacional e recomendações aprovadas em plenária do CONSEA, com participação da sociedade civil e do governo. Portanto, já existem os consensos, os tijolos, falta erguer a parede. A publicação de uma resolução do CONSEA sobre CoI é um passo fundamental, seria uma inspiração essencial para conselhos estaduais e municipais construírem suas próprias normas.
O terceiro desafio, que também é normativo, é a regulação da adesão de entidades privadas com e sem fins lucrativos no SISAN. Isso está previsto desde 2010, com o Decreto nº 7.272, mas em 15 anos esse processo de adesão ainda não foi regulamentado. E isso não é importante só por causa de CoI, mas é fundamental para definir com clareza o papel do setor privado, com e sem fins lucrativos, na política pública de SAN. Esse papel deve ser complementar, com C maiúsculo: o SISAN é um sistema público, baseado no reconhecimento constitucional da alimentação como um direito. Isso significa que o Estado tem a obrigação de garantir esse direito com políticas públicas, orçamentos públicos e responsabilidades que não podem ser terceirizadas.
A pandemia de COVID-19 deu visibilidade à fome e ampliou o número de atores envolvidos especialmente com filantropia e caridade corporativa. Isso é positivo, desde que esses atores não substituam o papel do Estado, mas que o complementem. Vejo alguns movimentos da sociedade civil com muita preocupação. Recentemente, o GT de Combate à Fome do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável, conhecido como Conselhão, propôs a criação de um fundo de gestão compartilhada entre governo e sociedade civil para financiar ações de combate à fome, conduzidas por organizações sem fins lucrativos. Esse fundo, que seria abastecido com doações privadas e recursos oriundos da taxação de produtos deletérios à saúde, como ultraprocessados e agrotóxicos, parece interessante à primeira vista. Mas há um detalhe: não fica claro como os recursos obtidos pelo Fundo serão utilizados e se serão destinados prioritariamente para políticas públicas. Além disso, há a proposta de um programa via projeto de lei que promove isenções fiscais para pessoas físicas e jurídicas que doarem para ONGs escolhidas com base em critérios, sem qualquer menção à adesão ao SISAN. A lógica por trás disso favorece organizações com grande visibilidade, boa capacidade de marketing e captação de recursos, mais capazes de atrair doações, e não necessariamente aquelas comprometidas com os princípios da política pública de segurança alimentar e nutricional, uma vez que as doações seriam feitas diretamente às organizações e a doação isenta e declarada no imposto de renda
Esse tipo de movimento parece pequeno, mas representa uma mudança estrutural no modelo de garantia do direito à alimentação. Em vez de reforçar o papel do Estado, esse modelo estimula a substituição do público pelo privado, com todas as implicações de conflitos de interesse que isso traz. Vamos aos poucos também favorecendo a lógica de isenção de impostos, em detrimento de orçamento público para políticas sociais.Por isso, é urgente avançar na normatização da adesão de entidades ao SISAN, definir claramente os limites da participação privada, estabelecer cláusulas de prevenção de CoI e manter viva a vigilância social sobre o papel do Estado.
Não se trata de rejeitar o setor privado. Pelo contrário: ele pode e deve contribuir, desde que seu papel esteja claramente definido e submetido a normas de prevenção de CoI. Ao mantermos esse debate ativo e crítico, damos um passo importante para proteger o caráter público do SISAN e o direito humano à alimentação adequada no Brasil.
Esse texto é fruto do webinário “A interferência do setor privado na agenda da Segurança Alimentar e Nutricional”, realizado pelo ObservaCoI no dia 5 de junho. Leia também o texto do João Peres, de O Joio e o Trigo.
- João Dornellas, presidente da ABIA, foi presidente do CONSEA-SP de maio de 2021 a janeiro de 2023, e reeleito no biênio seguinte, até janeiro de 2025.
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